quarta-feira, 27 de maio de 2009

Seu Ponteirinho

Era um homem correto, se visto pelos ideais da sociedade, da religião e da política. Pagava seus impostos com correção, era britanicamente pontual, responsável e ia à missa todos os domingos pela manhã. Cristão, católico, acreditava piamente no Deus da Bíblia. Fazia questão de mostrar a todos sua solicitude. Nunca recusava um pedido de ajuda, fosse financeira ou um simples conselho: lá estava ele, pronto e apto para socorrer.

Era um abstêmio convicto. Não queria que seu corpo saudável fosse maculado pelas mazelas do álcool. Muito menos seu intelecto. Prezava em ser equilibrado. “O álcool transtorna o espírito”, dizia com ar de sábio.

Sua organização era de dar inveja a qualquer militar. Camisas penduradas em cabides, separadas pela tonalidade das cores. Cuecas e meias organizadas por dia da semana, uma pilha para cada dia. Fazia questão de que a esposa passasse cada peça do seu vestuário. Até mesmo seus lenços deveriam estar impecavelmente engomados.

Seguia uma rotina rígida. Tinha horário certo até para ir ao banheiro. Controlava os segundos em seu relógio suíço para que nada fugisse do seu controle. Desde uma reunião de negócios até um simples café na padaria tinham seu horário.

Era conhecido na empresa em que trabalhava como aquele que resolvia tudo. “Precisa de alguma coisa pra ontem? Pede pro Ponterinho que ele dá conta!” Porém, ninguém o chamava para o happy-hour depois do trabalho. Aliás, isto seria inútil, pois, além de não beber, ele tinha o horário certo pra colocar a chave na fechadura da porta de casa, pra entrar, pra dar um beijo na mulher, pra tomar banho...

Quando era chamado por seu apelido: Ponteirinho, ele ficava indiferente, mas no fundo, no fundo, tinha uma ponta de orgulho por ser reconhecido pela sua disciplina, mesmo sabendo que a alcunha tinha sentido pejorativo.

Contudo... Acordou certo dia e, de forma habitual, a primeira coisa que fez foi olhar para as horas em seu relógio de pulso que não tirava nem para dormir. Olhou-o e estranhou: não podiam ser três horas, o sol parecia ter nascido a pouco tempo. Para seu desespero, percebeu que seu relógio parara d funcionar. Voltou seus olhos para o despertador em cima do criado-mudo e viu: 7:53. Como acordava religiosamente às 6:07, entrou em pânico. Suor frio, pupilas dilatadas, pelos arrepiados, embrulho no estômago, um gosto metálico na boca. Coração palpitando, batendo forte, pressionando a caixa torácica. E agora? Nunca na vida perdera a hora. Nunca teve nada fora do controle. E hoje uma hora e quarenta e seis minutos, agora, pra ser mais preciso, uma hora e quarenta e sete minutos desperdiçados, desaparecidos, exterminados, transformados em pó pelo relógio quebrado. “E o alarme do despertador? Por que não tocou?” “Eu desliguei...”, respondeu meio acordada, meio dormindo, a esposa. “Por quê?”, berrou como um animal, coisa que nunca fez na frente da mulher, nem ele se lembra da última vez que perdera o controle. “Você nunca precisa dele pra acordar mesmo...”, respondeu ainda meio grogue de sono, meio atônita com o grito visceral de Ponteirinho.

Vestiu suas roupas, pela primeira vez na vida, sem se importar se combinavam. Colocou uma cueca de quinta-feira, “Dane-se se é segunda.”, pensou. Sem perceber, vestiu a camisa da seleção brasileira e uma calça social cor de vinho. A barba por fazer, os cabelos emaranhados, o hálito horrível de toda uma noite de sono, tudo ficou pra trás.

Eram 8:41 e ele avançava os sinais da grande metrópole. Quando ficava preso atrás de um motorista lento saía do carro, gritava, voltava pro carro, xingava, buzinava. Lembrava do horário e berrava. Seu ponto deveria ser batido às 8:00 e já eram 8:53.

Esbaforido, chegou à empresa. Bufava. Mal cumprimentou o porteiro que parecia lhe trazer algum recado. Foi voando até sua sala e mal havia aberto a porta quando ouviu a voz com sotaque nordestino de Seu Severino, faxineiro da empresa.

— Eita, Seu Ponterim... Até domingo o senhor trabalha?

E numa voz gutural, flamejante, gritou:

— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO! Perdi a missa...

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